Este artigo tem por objeto de estudo o desenvolvimento sustentável no plano da dogmática jurídica das licitações públicas e a sua relação com o regime diferenciado para microempresas e empresas de pequeno porte. Busca analisar os fundamentos desse regime jurídico e verificar como o Direito Administrativo desempenha a função pragmática de intervir na economia através das normas constitucionais e infraconstitucionais que favorecem as microempresas e empresas de pequeno porte nos procedimentos licitatórios.
O desenvolvimento nacional sustentável na Dogmática Jurídica das licitações públicas
As licitações são procedimentos estruturados pelo direito positivo, que servem de instrumento para o Estado selecionar as propostas mais vantajosas e viabilizar a celebração de contratos administrativos, que disciplinam as relações do ente público com fornecedores de bens e serviços destinados ao atendimento das necessidades da própria Administração ou da sociedade. O epicentro do sistema licitatório brasileiro fica no Direito Constitucional, donde provêm os princípios e as regras gerais da Administração Pública, dentre essas a de que a licitação é obrigatória, “ressalvados os casos especificados na legislação”. Destarte, esse sistema se funda na regra geral (dogma fundamental) de que o Administrador Público tem o dever legal de promover a licitação para a contratação, com terceiros, de obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações.
Logo se constata que uma das categorias jurídicas fundamentais do Direito Administrativo é a licitação, sobre a qual há toda uma teoria dogmática, cujos pontos de partida inegáveis sobre os quais ela se estrutura são basicamente os seguintes: a) a obrigatoriedade do procedimento licitatório como regra geral de natureza constitucional, sendo excepcionais e previstas legalmente em numerus clausus a sua dispensa ou inexigibilidade; b) a vinculação do procedimento licitatório a certos fins ou fundamentos, sem os quais ele perde a sua validade, que estão previstos na Constituição Federal e na Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei no 8.666/93); c) a instrumentalidade do procedimento licitatório, que não constitui um objetivo em si mesmo, mas é um meio para o Estado realizar as suas funções, atingir os seus escopos constitucionais de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento sustentável, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; d) a legalidade a que estão submetidos os diversos procedimentos licitatórios (tomada de preços, carta-convite, concorrência e pregão), enquanto decorrência lógica do princípio da legalidade que vige no Direito Administrativo.
O fundamento constitucional da licitação pública reside no art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal, que obriga a Administração Pública a promovê-la como conditio sine qua non para a contratação de obras, serviços, compras e alienações; a assegurar igualdade de condições a todos os concorrentes; a estabelecer cláusulas sobre obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei; a somente impor condições de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações contratuais. No plano do direito positivo infraconstitucional, o art. 3o da Lei no 8.666/93 prescreve que a licitação se destina aos seguintes fins: a) assegurar a efetividade do princípio constitucional da isonomia; b) selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração; c) garantir a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Dispõe, ainda, a mesma regra legal, que a licitação deve ser julgada de acordo com os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos.
A partir da Medida Provisória no 495/2010, convertida na Lei no 12.349, de 15.12.2010, o art. 3o da Lei no 8.666/93 passou a contemplar, dentre os fins que a licitação deve concluir, assegurar a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, aqui entendido numa perspectiva interdisciplinar e aporética, baseado na ideia de equilíbrio entre as seguintes atividades empíricas: a) a exploração racional dos recursos naturais e minerais disponíveis no mundo; b) a manutenção da capacidade de regeneração desses mesmos recursos, indispensáveis à preservação das espécies vivas que existem na terra; c) o progresso social, econômico, jurídico, político, ético, educacional, científico e tecnológico da sociedade humana, na busca incessante por sua perfeição moral e intelectual.
Deve haver uma relação de equilíbrio, um equacionamento entre o progresso da humanidade, em todos os sentidos, e as fontes que o alimentam e o viabilizam, preservando os recursos disponíveis para as gerações futuras, para a sobrevivência das espécies vivas. Como bem observou recentemente o Papa Francisco em sua Carta Encíclica, “L’autentico sviluppo umano possiede un carattere morale e presuppone il pieno rispetto della persona umana, ma deve prestare attenzione anche al mondo naturale e «tener conto della natura di ciascun essere e della sua mutua connessione in un sistema ordinato»”. No século XVIII, ADAM SMITH (1723-1790) já destacou a importância da preservação dos recursos que garantem a subsistência dos seres humanos, afirmando sua primazia sobre o crescimento urbano: “Na natureza das coisas, assim como a subsistência tem prioridade sobre o conforto e o luxo, o esforço que fornece a primeira deve necessariamente ter prioridade sobre o que contribui para o último. Por isso, o cultivo e a melhoria da terra que proporciona o necessário à subsistência deve ter prioridade sobre o desenvolvimento da cidade, que fornece somente os meios de conforto e luxo”.
No plano do direito positivo, além da Lei no 8.666/93, existem no Brasil várias outras leis esparsas dispondo sobre o dever do Estado em promover o desenvolvimento sustentável, tais como: a) Lei no 13.153/2015, que institui a Política Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (art. 3o, inc. V); b) Lei no 12.651/2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa e outras providências (art. 1o, parágrafo único); c) Lei no 9.985/2000, que regulamenta o art. 225, § 1o, incs. I, II, III e VII da Constituição Federal e dá outras providências (art. 4o, inc. IV; art. 14, inc. VI; art. 20; art. 26; art. 41); d) Lei no 12.187/2009, que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima e dá outras providências (art. 3o, inc. IV); e) Lei no 11.284/2006, que dispõe sobre a gestão de floretas públicas para a produção sustentável (art. 2o, inc. II).
Cabe uma reflexão crítica quanto à terminologia “desenvolvimento sustentável” enquanto signo linguístico indispensável ao raciocínio econômico-jurídico aqui desenvolvido. Identificado ou conectado com as ideias de criação, inovação e progresso na realização dos fins do Estado, não existe desenvolvimento insustentável – a menos que se identifique o conceito de sustentabilidade com o de continuidade, o que resultaria em dizer que todo desenvolvimento só é sustentável se for contínuo. Se uma política pública é insustentável, não haverá desenvolvimento enquanto progresso ou melhoria nas atividades administrativas. De modo que, para os objetivos deste trabalho, o conceito de desenvolvimento deve ser limitado a uma atividade dinâmica e constante – incremento, criação, inovação, aperfeiçoamento etc. –, em que as finalidades estatais, mantendo-se essencialmente as mesmas, se transformam de um status quo a outro melhor progressivamente (otimização da relação custo-benefício) e se por qualquer motivo ou anomalia esse processo evolutivo não se sustenta, não se pode falar em desenvolvimento do ponto de vista de um Estado que busca evoluir nas esferas do social, do econômico, do ambiental, do político, do jurídico, do científico, do educacional, do intelectual etc.
A modificação trazida pela Lei no 12.349/2010 introduziu no ordenamento jurídico a função do Direito Administrativo de intervir na realidade, por meio da licitação, para garantir a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, ou seja, para criar condições e implementar ações práticas no sentido de que o Brasil, um Estado classificado como em desenvolvimento ou emergente16, efetivamente alcance um progresso nos campos social, ético, jurídico, político, econômico, científico e ambiental, preservando as fontes que dão origem e impulsionam esse progresso, de forma a mantê-lo cíclico e perene.
A evolução da sociedade está ligada intrinsecamente à realização dos fins do Estado Democrático de Direito. Segundo percuciente análise de DALMO DE ABREU DALLARI, “o fim do Estado é o bem comum, entendido este como o conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”. Na ordem jurídica constitucional, as finalidades do Estado Republicano do Brasil estão previstas no art. 3o da Constituição Federal: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. O desenvolvimento entendido como progresso ou evolução na busca por maximizar a realização dos fins do Estado resulta, então, da soma de fatores reais e práticas que promovam, de forma racional, equilibrada e concomitante, o crescimento econômico, a preservação do meio ambiente, a redução das desigualdades de toda ordem, a erradicação da miséria e da pobreza, a proteção da dignidade humana etc.
À Dogmática Jurídica cabe enfrentar o problema de como o Direito Administrativo pode construir uma teoria sistemática a partir dos textos jurídicos de Direito Positivo – como ensina LUÍS ALBERTO WARAT, ao dizer que “la dogmática jurídica se presenta como la tentativa de construir una teoria sistemática del derecho positivo, sin formular sobre el mismo ningún juicio de valor, convirtiéndola en uma mera ciência formal” – capaz de transformar a realidade para impulsionar o desenvolvimento nacional em diversas áreas do conhecimento, sobressaindo aqui, de acordo com a temática deste artigo, os mecanismos de tratamento privilegiado das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas, como instrumentos para viabilizar a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, o que é objeto do próximo capítulo.
O regime jurídico diferenciado aplicável nas licitações públicas em favor de microempresas e empresas de pequeno porte.
Há um regime jurídico particularizado aplicável às microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas, que ostenta fundamentos constitucionais para sua existência e validade. Nesse sentido, o art. 170, inc. IX, da Constituição Federal estabelece como princípio da ordem econômica o tratamento favorecido aos pequenos empresários constituídos sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no Brasil. Por sua vez, o art. 179 da Carta Magna institui o dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de dispensar “às microempresas e empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”. Portanto, o Direito Constitucional é o fundamento superior de todo o regime jurídico especial aqui estudado.
A Lei Complementar no 123, de 14.12.2006, instituiu o Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, estabelecendo, no plano do ordenamento jurídico infraconstitucional (atingindo diversas disciplinas jurídicas), normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte (art. 1o), em cujo conceito jurídico-positivista estão incluídas a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário a que se refere o art. 966 do Código Civil (art. 3o), havendo um limite de faturamento bruto anual para as microempresas de até R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e para as empresas de pequeno porte de R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) até R$ 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais) (LC 123/2006, art. 3o, incs. I e II).
O tratamento jurídico-legal diferenciado previsto na LC 123/2006 abrange as seguintes regras de favorecimento às microempresas e empresas de pequeno porte em procedimentos licitatórios:
a) Possibilidade de fornecimento de documentação fiscal “mesmo que essa apresente alguma restrição” (art. 43, caput);
b) Possibilidade de regularização tardia da documentação fiscal no prazo de 05 (cinco) dias, prorrogável por igual período, a critério da Administração Pública, “para a regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do débito e emissão de eventuais certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa” (art. 43, § 1o) – caso não regularizada a documentação, se dá a decadência do direito à contratação, podendo a Administração aplicar as sanções previstas no art. 81 da Lei no 8.666/93 (art. 43, § 2o);
c) Preferência na contratação, como critério de desempate, assim consideradas aquelas “situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada” (art. 44, § 1o);
d) Preferência na contratação, como critério de desempate em procedimentos licitatórios na modalidade pregão, assim consideradas aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 5% (cinco por cento) superiores à proposta de melhor preço (art. 44, § 2o);
e) Tratamento diferenciado e simplificado nas contratações públicas da Administração direta, indireta, autárquica e fundacional, “objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica” (art. 47, caput). Para concretizar esse tratamento diferenciado, a Administração pode: (i) realizar procedimento licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) (art. 48, inc. I); (ii) em procedimentos licitatórios destinados à aquisição de obras e serviços, “exigir dos licitantes a subcontratação de microempresas ou empresa de pequeno porte” (art. 48, inc. II); (iii) em certames para aquisição de bens de natureza divisível, estabelecer “cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte” (art. 48, inc. III).
O regime jurídico particularizado de contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, previsto nos arts. 47 e 48 da LC no 123/2006, não se aplica quando: (i) inexistir “o mínimo de 03 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório” (art. 49, inc. I); (ii) não for vantajoso para a Administração Pública o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte “ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado” (art. 49, inc. II); (iii) a licitação seja dispensável ou inexigível, de acordo com os arts. 24 e 25 da Lei no 8.666/93, “excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48” (art. 49, inc. III).
A finalidade das licitações públicas de garantir o desenvolvimento sustentável e o regime jurídico diferenciado para microempresas e empresas de pequeno porte.
O conjunto de textos legais que estrutura o regime de benefícios e faculdades jurídicas em favor das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas revela pontos de intersecção entre o Direito Constitucional, o Direito Administrativo, o Direito Empresarial e a Economia, evidenciando o caráter interdisciplinar da experiência jurídica, que deve servir de parâmetro metodológico para o devido estudo e compreensão da Ciência Jurídica. Há um incentivo ao desenvolvimento (crescimento) econômico por meio do Direito Administrativo, através de regras que atenuam a rigidez das condições de participação de microempresas e empresas de pequeno porte em certames licitatórios – que contam com menos recursos para fazer frente à concorrência –, criando um ambiente facilitador da superação dos obstáculos, sobretudo os de natureza econômica e fiscal, que esses empresários de menor capacidade econômica comumente enfrentam na disputa pelo contrato com o Poder Público.
Conforme já visto, esse desenvolvimento econômico enquanto parte do desenvolvimento nacional – que abrange progressos em outras áreas do conhecimento – só pode ser viabilizado de forma eficiente e adequada quando equacionado à realização de diversos outros valores constitucionais, tais como: a preservação do meio ambiente (CF, art. 225); o desenvolvimento científico (CF, art. 218); a proteção e preservação de identidades culturais nacionais, regionais e locais; a liberdade, a justiça social e a solidariedade (CF, art. 3o, inc. I); proteção do patrimônio histórico e cultural da nação; valorização do trabalho humano (CF, art. 70) etc.
Um problema pouco analisado, mas muito importante, relativo à participação de microempresas e empresas de pequeno porte em licitações refere-se à exigência de capital social mínimo. A questão é a seguinte: o § 2o do art. 31 da Lei no 8.666/9325 institui o direito dos particulares interessados em participar de certames licitatórios de apresentarem uma das garantias previstas no § 1o do art. 5626 dessa mesma Lei de Licitações, ao invés de comprovarem capital social ou patrimônio líquido mínimo? Não é comum os editais licitatórios preverem essa alternativa como comprovação de capacidade econômico-financeira, mas isso não significa que as microempresas e empresas de pequeno porte que não possuam capital social mínimo não possam participar do certame. Há editais que, embora permitam a participação de microempresas, exigem prova de capital social mínimo que elas não podem fazer e não lhes asseguram a participação no certame por meio da alternativa prevista na segunda parte do § 1o do art. 31 da Lei no 8.666/93.
Evidentemente, é muito mais interessante e vantajosa para a Administração que as licitantes comprovem sua qualificação econômico- financeira, objetivamente, através de uma das modalidades de garantia constantes do § 1o do art. 56 da Lei de Licitações. Na prática, a comprovação de patrimônio líquido mínimo, sempre sujeito a vicissitudes e mutações provocadas por fatores econômicos, não é melhor, como dado objetivo de demonstração de capacidade econômico-financeira, do que dinheiro, títulos da dívida pública, seguro-garantia ou fiança bancária.
Além disso, a interpretação das regras que disciplinam o procedimento licitatório sob a óptica constitucional – que impõe tratamento jurídico diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte e a simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias (CF, art. 179) – demonstra que a alternativa prevista no § 2o do art. 31 da Lei no 8.666/93 é um direito dos pequenos empresários28 que não podem comprovar capital social mínimo e não um ato discricionário do Administrador Público29. Desta forma, de acordo com o regime jurídico, de fundamento constitucional, que institui tratamento diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas, caso elas não possam comprovar capital social mínimo e esteja prevista a possibilidade de sua participação no certame, têm o direito de comprovar sua capacidade econômico-financeira nos termos do art. 31, § 2o, da Lei no 8.666/93, que lhes assegura apresentar uma das garantias previstas no art. 56, § 1o, incs. I a III, como alternativa válida e eficaz que substitui a prova de capital social mínimo.
A Constituição da República está no centro do sistema jurídico e as leis infraconstitucionais devem ser interpretadas sob a óptica de valores constitucionais que precisam ser realizados em conjunto e não isoladamente. Esse método de interpretação deve ser aplicado às regras jurídicas que instituem benefícios em prol das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas, que desempenham um papel importante na escatologia do desenvolvimento nacional, pois seu objetivo é intervir na economia por meio das licitações e contratos administrativos, fazendo da legislação administrativa uma “ferramenta pragmática do desenvolvimento”. As regras do empate ficto, por exemplo, previstas no art. 44, §§ 1o e 2o, da LC no 123/2006, criam condições para a correção de desigualdades econômicas e para a distribuição mais adequada dos recursos públicos, ao darem preferência para a contratação às microempresas e empresas de pequeno porte que, neste caso, podem “apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado” (LC 123/2006, art. 45, inc. I).
É indiscutível que um aporte financeiro proveniente da celebração de um contrato administrativo com o Poder Público representa um importante fator de crescimento e consolidação de microempresários e empresários de pequeno porte no mercado capitalista. Esse crescimento e essa consolidação favorecem o desenvolvimento que cumpre ao Estado social e democrático de Direito realizar, proporcionando avanços em diversos âmbitos da realidade humana, como, por exemplo: a) na dimensão social: a geração de empregos e, por conseguinte, a redução da pobreza e da desigualdade socioeconômica; b) na dimensão econômica: fortalecimento de pequenos empresários (hipossuficientes) e correção de distorções de mercado, combatendo a concentração excessiva ou monopólio de riquezas; c) na dimensão da justiça: equidade na distribuição dos produtos econômicos.
A concepção das normas de Direito Administrativo como instrumentos de intervenção na economia, favorecendo microempresas e empresas de pequeno porte em licitações, está estreitamente relacionada ao pragmatismo jurídico e à análise econômica do direito, considerando especialmente as consequências que produzem e a maximização do progresso (ou, caso se prefira, desenvolvimento sustentável), ao melhor custo-benefício possível, em diversos segmentos do conhecimento e das atividades humanas.
Pragmatista da atualidade, RICHARD POSNER, Juiz norte- americano e docente na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, reconhece o caráter consequencialista dessa abordagem do Direito, que busca a consecução das resoluções que indiquem as melhores consequências: “In approaching an issue that has been posed as one of
statutory ‘interpretation’, pragmatists will ask which of the possible resolutions has the best consequences, all things (that lawyers are or should be interested in) considered […]”. Com efeito, os pragmatistas não estão interessados na autenticidade de uma interpretação sugerida como uma expressão da intenção dos legisladores ou dos autores da Constituição, mas na consecução dos melhores resultados para a sociedade, o que inclui o desenvolvimento em todas as suas vertentes (social, econômica, jurídica, científica, ambiental, cultural, intelectual etc.).
Essa perspectiva pragmática do Direito Administrativo, aqui considerada, sofreu influências do utilitarismo de JEREMY BENTHAM (1748-1832), cuja filosofia jurídica foi baseada e estruturada no princípio da utilidade, que ele entendia ser “that principle which approves or disaproves of every action whatsoever, according to the tendency which it appears to have to augment or diminish the happiness of the party whose interest is in question: or, what is the same thing in other words, to promote or to oppose that happiness”. Na filosofia de Bentham, a utilidade é vista como a propriedade de qualquer objeto, que tende a produzir benefício, vantagem, satisfação, bem ou felicidade ou prevenir dano, dor, mal ou infelicidade para o sujeito cujo interesse é considerado: se o sujeito for a comunidade em geral, então a felicidade da comunidade; se o sujeito for o indivíduo, então a felicidade individual. A análise consequencialista também é encontrada em Bentham: “The tendency of an act is mischievous when the consequences of it are mischievous; that is to say, either the certain consequences or the probable”.
O estudo procedido neste trabalho evidenciou o caráter pragmático das normas constitucionais e infraconstitucionais de Direito Administrativo que instituem um regime diferenciado para dispensar tratamento favorável às microempresas e às empresas de pequeno porte nas licitações públicas. Essas normas desempenham a função de intervir na economia e devem ser construídas, aplicadas e interpretadas de acordo com padrões de racionalidade e interdisciplinaridade, a fim de que atinjam o escopo de promover um desenvolvimento sustentável, que assegure o crescimento econômico de microempresas e empresas e pequeno porte e, por conseguinte, o crescimento da economia nacional, mas sem comprometer as fontes que produzem esse desenvolvimento, buscando o máximo de benefícios para a sociedade, ao menor custo possível.
O desenvolvimento nacional sustentável que o procedimento licitatório tem por função garantir (Lei no 8.666/93, art. 3o), que o Estado tem por objetivo alcançar (CF, art. 3o, inc. II), no tocante ao regime jurídico diferenciado das microempresas e empresas de pequeno porte, para ser alcançado depende de uma interpretação mais pragmática e funcional das normas de Direito Administrativo, que leve em conta muito mais as consequências empíricas, os resultados, e menos as formalidades legais do processo administrativo. É por isso que a abordagem pragmatista é adequada ao estudo do tema deste artigo, ou seja, porque procura “encontrar a decisão que melhor atenda às necessidades presentes e futuras”.
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